O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quinta-feira, abril 04, 2002


A MUSA E O POETA

Porém nada valeu em face da última visão:
Raiaram mais densas as luzes, mais agudas e penetrantes, caíndo agora, em jorros, do alto da cúpula -- e o pano rasgou-se sobre um vago tempo asiático...Ao som de uma música pesada, rouca, longínqua -- Ela surgiu, a mulher fulva...
E começou dançando...
Envolvi-a uma túnica branca, listada de amarelo. Cabelos soltos, loucamente. Jóias fantásticas nas mãos; e os pés descalços, constelados...
Ai, como exprimir os seus passos silenciosos, húmidos, frios de cristal; o marulhar da sua carne ondeando; o alcóol dos seus lábios que, num requinte, ela dourara -- toda a harmonia esvaecida nos seus gestos; todo o horizonte difuso que o seu rodopiar suscitava, nevoadamente...
Entretanto, ao fundo, numa ara misteriosa, o fogo ateara-se...


in A CONFISSÃO DE LÚCIO de Mário Sá-Carneiro


REPENSAR A MULHER: (excerto de um texto de Angela Santos)

Urge à mulher repensar-se, à luz do que sabe e sente, e assumir o discurso na primeira pessoa; olhar-se à luz do que foi a sua história, ou ausência dela e interrogar-se sobre as zonas de sombra de uma História onde as mulheres não têm lugar durante séculos; interrogar-se sobre as infindáveis tentativas de lavrar tratados ditos científicos, filosóficos, princípios jurídicos que se afadigaram em conferir-lhe, a condição de mentecapta e a provar a sua menoridade, outorgando aos pais (homens) e aos maridos, o papel de tutores, face à lei; interrogar-se porque necessitam de provar repetidamente as suas capacidades profissionais, quando homens mais ou menos medíocres, e muitas vezes menos preparados, são preferidos; saber porque ainda hoje lhes é exigido o papel de “mulher-biónica”, desdobrando-se em várias para poder cumprir os seus diferentes papeis, e porque sendo a maioria da humanidade, lhe continua a ser negada a possibilidade de ser voz, e ascender a lugares onde uma efectiva capacidade de decisão sobre a forma de organizar e gerir as sociedades, lhe seja atribuída, ou seja porque lhe continua a ser vetado o acesso à política onde afinal se discute a vida da Polis e se fazem as escolhas que determinam a vida de todos nós?

Pergunto-me, uma vez dadas à mulher as condições para o seu pleno desabrochar e tomada de consciência do que é e do que se espera seja a sua acção no mundo, este sob a perspectiva do” olhar feminino” não seria um mundo bem mais próximo da realidade do ser humano, enquanto ser pluridimensional?

A chamada libertação da mulher, dos muitos jugos a que tem estado sujeita, desde tempos imemoriais, encerrada nas cidadelas conceptuais erigidas pelos “homens de pensamento”, inevitavelmente conduzirá à libertação do homem (macho), posto que este a si mesmo se encerrou na visão distorcida que criou da mulher.

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