O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

quarta-feira, novembro 25, 2009

SABER BEM QUEM SOMOS


A SABEDORIA


Considerar a nossa maior angústia como um incidente sem importância, não só na vida do universo, mas na nossa mesma alma, é o princípio de sabedoria. Considerar isto em pleno meio dessa angústia é a sabedoria inteira. No momento em que sofremos, parece que a dor humana é infinita. Mas nem a dor humana é infinita, pois nada de humano é infinito, nem a nossa dor vale mais que ser uma dor que nós temos.

Quantas vezes, sob o peso de um tédio que parece ser loucura ou de uma angústia que parece passar além dela, paro, hesitante, antes que me revolte, hesito, parando, antes que me divinize. Dor de não saber o que é o mistério do mundo, dor de não nos amarem, dor de sermos injustos connosco, dor de pesar a vida sobre nós sufocando e prendendo, dor de dentes, dor de sapatos apertados – quem pode dizer qual é a maior em si mesmo, quanto mais nos outros, ou na generalidade dos que existem?

Para alguns que falam e me ouvem, sou um insensível. Sou, porém, mais sensível – creio – que a vasta maioria dos homens. O que sou, contudo, é um sensível que se conhece, e que portanto conhece a sensibilidade.

Ah! não é verdade que a vida seja dolorosa, ou que seja doloroso pensar na vida. O que é verdade é que a nossa dor só é séria e grave quando a fingimos tal. Se formos naturais, ela passará assim como veio, esbater-se-à assim com cresceu. Tudo é nada e a nossa dor nele.

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A MÁSCARA

(…)

Ninguém me conhece sob a máscara da igualha, nem soube nunca que era máscara, porque ninguém sabia que neste mundo há mascarados. Ninguém supôs que ao pé de mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-me sempre idêntico a mim.

(…)

Vivemos todos longínquos e anónimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um relâmpago sem limites; mas para outros ainda é essa a dolorosa constância e quotidianidade da vida.


Saber bem quem somos não é connosco, que o que o pensamento ou sentimos é sempre uma tradução, que o que queremos o não quisemos, nem porventura alguém o quis – saber tudo isto a cada minuto, sentir tudo isto em cada sentimento, não será isto ser estrangeiro na própria alma, exilado das próprias sensações?


Mas a máscara, que estive fitando inerte, que falava à esquina com um homem sem máscara nesta noite de Carnaval, por fim estendeu a mão e se despediu rindo. O homem natural seguiu à esquerda, pela travessa a cuja esquina estava. A máscara – dominó sem graça – caminhou em frente, afastando-se entre sombras e acasos de luzes, numa despedida definitiva e alheia ao qual eu estava pensando. Só então reparei que havia mais na rua que os candeeiros acesos, e, a turvar onde eles não estavam, um luar vago, oculto, cheio de nada como a vida…

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In O LIVRO DO DESASSOSSEGO – Fernando Pessoa

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