O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sexta-feira, julho 31, 2015

COMO AS MENINAS AGORA SÃO FORÇADAS A TER VIDA SEXUAL...


É preciso ter coragem de estar sozinha...


É preciso ter coragem de estar sozinha também. E sobre isso ninguém nos ensinou. Ninguém vai nos ensinar. Há uma normatividade rígida se impondo sobre a afetividade feminina, mas dessa vez não fala de castração. Simula liberação. Para que ela se efetive, é preciso produzir em massa uma ansiedade quanto ao sexo, um desespero por parceiros, uma incompletude que nos rouba de nosso protagonismo e nos aprisiona – sendo esse o mesmo mecanismo da sensação de insuficiência física produzida pela ditadura estética e da sensação de insuficiência emocional produzida pela cultura romântica. A quem a insuficiência sexual está servindo? A quem o patriarcado serve. Falar disso, embora seja claramente um questionamento sobre até que ponto nossos corpos e sentimentos são realmente e apenas nossos, fatalmente soará como moralismo. É assim que querem que vejamos.

Antes de tudo, devemos admitir que as meninas fazem sexo cada vez mais cedo e que isso reflete um problema grave de gênero, uma vez que não fazem por mero instinto, mas porque há toda uma cultura que prega a obrigatoriedade da vida sexual. Independentemente de a infância ser uma construção histórica, a sua abreviação contemporânea é um interesse mercadológico. Elas fazem sexo para não se sentir socialmente inadequadas. A quantidade de vídeos de revenge porn de adolescentes tomando as redes sociais, a quantidade de letras de música falando de “novinhas” e o investimento pesado da indústria e da mídia na erotização infantil demonstram que há toda uma legislação subjetiva determinando a hipersexualização da mulher desde muito cedo.
Tudo à nossa volta constrange, impele, coage para o sexo. Mostrar-se sexualmente ativa, intensa e frequente é garantia de privilégios. Ora, o patriarcado é sobre sermos coadjuvantes: dos processos políticos e de nossas vidas. À frente, sempre a figura masculina, determinando o nosso manuseio correto. Logo, não só os homens gozam de um conjunto de privilégios, é preciso também “conceder” aparentes benefícios às mulheres, incentivando a competição entre elas, para que elas acreditem que há alguma forma de premiação dentro desse sistema. E as mulheres são “premiadas” segundo diferentes critérios: submissão aos padrões de beleza, ajuste à moral e aos costumes (mulheres relacionáveis), disposição sexual e capacidade de proporcionar prazer ao homem (mulheres consumíveis)…
Na contemporaneidade líquida, os falsos privilégios femininos estão ligados especialmente ao consumo sexual, de modo que as mulheres precisam comprovar que são livres, donas de seus corpos e bem-resolvidas, mantendo uma aura de autonomia. Essa autonomia sexual precisa ser aparente, não pode representar, em hipótese alguma, uma ruptura com o patriarcado, ela é uma ficção de uso, uma licença. A apropriação da homoafetividade feminina como fetiche é um exemplo de como a liberdade sexual feminina é encarada como uma concessão. Essa autonomia também vende o produto feminino com uma garantia de blindagem emocional: a mulher bem resolvida dá menos trabalho, não precisa de tantos cuidados no trato, não se melindra com qualquer gestozinho agressivo, não demanda tanto desgaste na sua administração.
É interessante para o patriarcado que a nossa sexualidade seja estimulante, garantindo o entretenimento em longo prazo ou o descarte imediato, como todo bem de consumo. Quase nos esquecemos de que existimos para nós, quase nos condenamos a bobas da corte. Agora somos máquinas de prazer. Democratizamos e afirmamos, assim, o sexo como mercado: somos todas profissionais de alguma maneira, eis o sonho machista realizado. O que não representa, de modo algum, a problematização da pornografia ou a libertação da mulher em situação de prostituição, ela permanece segregada e violável.
Resta claro como o patriarcado subverte os nossos processos e rouba a cena que jurávamos protagonizar. Quantas outras causas pensamos alavancar e correm esse mesmo risco? Ou já foram sequestradas e ainda não percebemos? Diante de um sistema que corrompe e usurpa até mesmo a idéia de empoderamento por meio de uma sexualidade mais livre em prol do prazer masculino, o que parece definitivamente libertário? Respondo: o triunfo sobre essa ansiedade por parceiros e pela consagração sexual dentro do jogo de falsos privilégios dados à mulher. É no estado de solitude que essa solidão devastadora e insaciável perde a força. É quando tomamos coragem de romper com a obrigatoriedade de um parceiro, com esse desespero por companhia e afirmação sexual que finalmente podemos empregar a nossa energia em atividades diversas, que nos permitam tomar o mundo, que nos apresentem uma perspectiva de igualdade de gênero a respirar fora da guerra dos sexos. Ou o contrário: é quando empregamos a nossa energia em atividades que nos façam tomar o mundo, que nos apresentem uma perspectiva de igualdade de gênero respirando fora da guerra dos sexos, que tomamos coragem de romper com a obrigatoriedade de um parceiro, com esse desespero por companhia.
De qualquer modo, é preciso autoconhecimento. A nossa intimidade sempre foi objeto de disputa e controle, nunca nos pertenceu. Parece improvável que realmente a gente venha a conhecer relações mais saudáveis e justas sem que haja uma retomada e reconhecimento dessa intimidade, para que nunca mais fique ao cálculo dos interesses culturais, sociais e econômicos traçados pela supremacia masculina. Precisamos nos explorar mais, somos um universo desconhecido para nós mesmas. Aprender a ficar só e a ser por inteiro, virando o tabuleiro da manipulação afetiva e sexual, pode ser um passo determinante para nos desintoxicar de séculos viciadas em submissão, competição e aprovação. Se mesmo o nosso protagonismo em algumas questões pode ser uma ilusão de ótica, aprender a estar consigo e a preencher-se de companhias não sexuais (notem como a sororidade é imprescindível), de objetivos que nos obriguem a ir além de nós e que restaurem o óbvio – não somos as nossas emoções, NÓS TEMOS AS NOSSAS EMOÇÕES – podem ser os únicos passos concretos para a descolonização e autodeterminação femininas.

Maria Gabriela Saldanha

 

1 comentário:

Ná M. disse...

Aqui no Brasil é comum ver , em regiões de mais pobreza, meninas de 12, 13 anos, que nem a menstruação desceu direito ainda, GRÁVIDAS..uma aberração.. Como uma criança pode ser mãe de outra? Uma tristeza... cultura, educação, que vivemos....