O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

sábado, fevereiro 20, 2016

Para todas as mulheres...

Memórias caladas de todas as mulheres...avós, mães e tias e irmãs...amigas, vizinhas, comadres - que sofrem e sofreram caladas todas as afrontas... 
(in memorian)

Mundos e Fundos

Os dados foram lançados mas o jogo ainda não terminou. Mary continua a desdobrar o passado. António ficou a entrar naquela boca do metro. Um fundo que ela viu como uma viagem interrompida no centro dos seus olhos.
Debruçada sobre as memórias, insiste em matizá-las com as cores, cujos movimentos proclamam um efeito transcendente e não contraditório à luz. Era a idade da inocência.
Um tempo marcado por um único conhecimento de si. Saber-se deitada sobre o manto verde dos campos a sentir o efeito da terra húmida no seu corpo. As luzes do candeeiro afrouxaram. Os seus olhos fecharam-se.
Quer ainda saber, se o que a levou a abrir as pernas, ainda que forçada quando era uma criança, fizeram de si uma mulher pronta para seguir viagem, rumo ao mundo do prazer consentido por ela. Prazer esse, que ela já definiu como sendo o início de tudo; prazer em ser mulher, prazer em amar e ser amada, prazer sem ser filha, irmã, esposa, amante e mãe.
Prazer sem ser mãe. É este que retornará com tudo o que perdeu, quando assediada por dois homens mais velhos, já homens feitos à espera que ela os satisfizesse nas suas necessidades mais básicas. Esvaírem-se pelas suas pernas. Seguiam-lhe os passos sem que se desse conta disso.
Ela só sabia que era um caminho a abrir novos. Ali estaria a forma mais inequívoca de satisfazer o prazer de se sentir gente, apesar de ter nascido mulher. Primeiro a sedução camuflada por se encontrar entre os seus.
Família não muito chegada, mas família. Depois as conversas banais e triviais de acontecimentos presentes. A seguir, uma mão dele entre as suas pernas e uma dela conduzida ao sexo dele, já pronto.
Assediada para dentro de casa e entre os seus escombros, convencida a deixar-se levar, até que se abrisse num mundo desprovido de valores e de ideais consentâneos com o que a levaram a nascer no meio do nada.
Permitiam-se viver naquele submundo, onde só quem vive por lá, sabe de um vazio profundo. O prazer é assim, inconstante no tempo, subjugado também às variações atmosféricas da pele.
Imperfeito até na forma que dá ao corpo. Ela tinha consciência, que aquilo era também uma forma de prazer. Maria, a dos prazeres camuflados até que a vergonha do seu prazer fosse desvendada quando adulta, perante a certeza de ser mulher e pudesse deitar a boca no mundo. Gritar até que a ouvissem.
Quantas vezes terão passado por esta vergonha, muitas delas deitadas com o homem com quem casaram, forçadas a deixar que se afundasse nelas?
Conduzidas como presas, vítimas do seu próprio sonho quando se sentem cansadas a precisar descansar o corpo, e eles se limitam a pedir que se mantenham quietas e caladas? Era coisa rápida a precisar que se libertasse para um fundo que eles próprios criavam. Um fundo inexistente de vida.
Ali, era só uma criança.
Mary que nasceu mulher para dar luz ao mundo, tem o seu olhar para o seu agora. As suas pernas estão fechadas, as suas mãos, uma sobre a outra no seu peito, o seu corpo na posição horizontal mas verticalizando os modos que a fizeram até hoje ser o que é.
As janelas de sua casa ainda se encontram fechadas. Espia o dia dirigindo o olhar para o tecto branco da sala. Em branco tem sido também parte da sua vida, tal uma página de um livro que aguarda para se completar a sua história.
(...)
Mary (Eu)

(obrigada Dakini por este original...)

Sem comentários: