O SORRISO DE PANDORA

“Jamais reconheci e nem reconhecerei a autoridade de nenhuma pretensa divindade, de alguma autoridade robotizada, demoníaca ou evolutiva que me afronte com alguma acusação de pecadora, herege, traidora ou o que seja. Não há um só, dentre todos os viventes, a quem eu considere mais do que a mim mesma. Contudo nada existe em mim que me permita sentir-me melhor do que qualquer outro vivente. Respeito todos, mas a ninguém me submeto. Rendo-me à beleza de um simples torrão de terra, à de uma gotícula de água, à de uma flor, à de um sorriso de qualquer face, mas não me rendo a qualquer autoridade instituída pela estupidez evolutiva da hora. Enfim, nada imponho sobre os ombros alheios, mas nada permito que me seja imposto de bom grado Libertei-me do peso desses conceitos equivocados e assumi-me como agente do processo de me dignificar a mim mesma, como também a vida que me é dispensada. Procuro homenageá-la com as minhas posturas e atitudes e nada mais almejo. É tudo o que posso dizer aqueles a quem considero meus filhos e filhas da Terra. “ In O SORRISO DE PANDORA, Jan Val Ellam

domingo, julho 10, 2016

UM LIVRO MUITO IMPORTANTE



Christa Wolf é uma das mais notáveis escritoras alemãs, cuja obra ultrapassa todo e qualquer limite geográfico e cultural na sua busca pela verdade. A sua produção literária acompanhou, bem de perto, o processo evolutivo da ex-RDA, concedendo ao indivíduo um papel central nas suas construções narrativas. Segundo Christa Wolf, a relação entre o indivíduo e a sociedade é quase sempre conflituosa e geradora de sofrimentos, sacrifícios e inquietações, sobretudo nas mulheres, que se têm submetido, ao longo dos séculos, aos valores masculinos.
Acreditando, pois, numa possível emancipação do género humano, a autora colocou as mulheres, devoradas por tormentos interiores, no centro dos seus romances. Assim, inseriu a personagem principal de Medeia – Vozes, caracterizada por uma forte densidade dramática, num período em que se subestimava o poder feminino oprimido pelo masculino e em que os reis escarneciam das rainhas.
Segundo teóricos como Margaret Atwood e David R. Slavitt, fala, também, em nome dos Turcos na Alemanha, dos descendentes Africanos na Europa e dos Judeus através de Medeia, ou seja, dá voz a todos os que foram caluniados, rejeitados e desprezados. Daí que tenha afirmado numa entrevista dada à Magazine Littéraire: «Mais ceux qui ont réellement perdu quelque chose m’intéressent énormément, et comment ils essaient de s’en sortir».
A sua mensagem fá-la passar através da literatura a que associa o mito. Incapaz de resistir ao seu fascínio, caracteriza, ainda, a grande variedade de fontes e tradições históricas como estimulantes, excitantes e instrutivas. No caso de Medeia – Vozes, a autora, após diferentes interpretações do mito em questão (Medeia), rejeita, pura e simplesmente, a efabulação de Eurípides e a imagem de mãe infanticida que foi imposta à consciência ocidental, concedendo a Medeia a possibilidade de se afirmar como mulher e de revelar como foi vítima das necessidades e dos valores dos homens.

Por mais de dois mil anos, Medeia, uma das mais poderosas mulheres da grega, é acusada de vários crimes, tais como o fratricídio, o infanticídio e o envenenamento de Glauce, mas Christa Wolf vem negar que Medeia tenha cometido algum destes crimes. Apresentando-nos um mito que ficou na memória dos homens e demonstrando-nos a perenidade do mesmo no tempo, Wolf transforma este mito antigo e a sua personagem central na exploração contemporânea do poder.
A abordagem do mito, em Medeia – Vozes, é original e inovadora pelo facto de Medeia não cometer nenhum dos crimes de que Eurípides a acusa. Wolf apresenta Medeia como uma mulher que está na fronteira entre dois sistemas de valor, corporizados respectivamente pela sua terra natal, a Cólquida e pela terra para a qual foge, Corinto. Aqui, Medeia é abandonada pelo marido e as forças que estão no poder manifestam-se contra ela, chegando mesmo à perseguição. A autora, como defensora dos fracos e oprimidos, dá-nos, também, a imagem de Medeia e dos Colcos como emigrantes refugiados junto dos Coríntios de quem divergem física (cor da pele e do cabelo) e culturalmente.
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Numa emocionante história de intriga política e de amor, a Medeia de Christa Wolf é decidida, sincera, confiante; é uma mulher de compaixão, coragem e convicção, que luta para preservar a sua independência, mesmo quando o seu conhecimento se torna um risco. Esta Medeia, cujos crimes são apenas o esforço por compreender e descobrir a verdade, ama os seus filhos, possui extraordinários poderes mágicos, tem o dom da cura e é invejada, temida e falsamente acusada de assassinato por aqueles que a rodeiam. É uma Medeia a quem ninguém consegue ficar indiferente.
Além de bela e provocatória, esta Medeia é uma mulher que se evidencia pelas suas fortes convicções e que luta até ao fim pelos seus ideais. É mais humana que a Medeia de Eurípides, não apresentando o seu carácter vingativo, mas é, também, bárbara e feiticeira, tal como se autodenomina. É uma personagem com carácter quase omnisciente, uma vez que conhece os segredos mais bem guardados de Corinto e da Cólquida, que vive determinada a preservar a sua independência e, acima de tudo, a descobrir a verdade. É, pois, a descoberta dessa verdade, ou antes de um segredo temível, que a levará a sofrer represálias e a ser acusada, injustamente, de vários crimes. Medeia – Vozes é, assim, um estudo de poder, do modo como este opera e do comportamento dos seres humanos sob pressão, quando o poder os oprime.
Em conclusão, Christa Wolf apresenta-nos uma outra Medeia, diferente da euripidiana, que aparece, numa abordagem directa e original, aos olhos da autora, isenta de qualquer crime e integrada numa emocionante história de intriga política, de amor, de poder e de opressão do poder perante os fracos e oprimidos, que tanto defende.
Comprova-se, pois, em Medeia – Vozes, que, embora o mito de Medeia remonte a uma época passada e a tradições literárias bastante antigas, entre elas a versão de Eurípides, que imortalizou Medeia como a infanticida, continua sempre bastante dinâmico e actual.

Christa Wolf - Morreu em Berlim, a cidade onde vivia desde os anos 1950, o símbolo da Alemanha dividida que foi, a par de um feminismo que era reflexo da pressão inevitável da sociedade sobre o indivíduo, o grande tema do seu trabalho literário. Christa Wolf, autora de “Cassandra: Narrativa” ou “Medeia: Vozes”, voz polémica na antiga República Democrática Alemã (RDA), de que foi uma das escritoras mais respeitadas mas, igualmente, uma das mais críticas; voz que se manteve polémica quando da reunificação (a que se opôs), morreu aos 82 anos, de “doença prolongada”, anunciou a sua casa editorial a Suhrkamp-Verlag.
Candidata ao Nobel, viu o seu amigo Günter Grass, distinguido pela Academia Sueca em 1999, declarar na altura que gostaria de partilhar com ela aquela que é a mais importante distinção literária mundial.

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